A Câmara dos Deputados aprovou, na terça-feira, 18 de novembro de 2025, uma emenda ao PL Antifacção que proíbe todos os presos de votar no Brasil — incluindo aqueles ainda em prisão provisória e que nunca foram condenados. A mudança, apresentada pelo deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS), altera dois artigos do Código Eleitoral e, se virar lei, cancelará automaticamente o título de eleitor de qualquer pessoa detida, mesmo que aguarde julgamento. O texto foi aprovado por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção. Mas há um problema: isso pode ser inconstitucional.
Do que se trata a mudança?
Atualmente, a Constituição Federal de 1988 garante que apenas quem foi condenado com sentença transitada em julgado perde o direito ao voto. Presos provisórios — pessoas que ainda não foram julgadas, mas estão detidas por decisão judicial — mantêm o direito de votar. Em 2024, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mais de 6.000 presos provisórios exerceram esse direito nas eleições municipais. A Justiça Eleitoral montava seções eleitorais dentro de presídios, com urnas e mesários, respeitando o princípio da presunção de inocência. Agora, essa prática seria extinta.A emenda de Van Hattem argumenta que “não faz sentido” alguém afastado da sociedade decidir o futuro dela. “É um contrassenso”, disse o deputado. Ele chamou o direito de “regalia” e citou custos e riscos operacionais como justificativa. Mas a crítica mais forte veio de quem não é de sua bancada: Lindbergh Farias (PT-RJ), líder do PT na Câmara, admitiu publicamente: “Vamos votar ‘sim’ sabendo que é inconstitucional.”
Uma votação que dividiu partidos — e não por ideologia
A aprovação da emenda foi surpreendente pela aliança que formou. Enquanto PSOL e Rede votaram contra — com Luiza Erundina, Sâmia Bomfim e Chico Alencar defendendo o voto como direito inalienável —, muitos da oposição, inclusive do PT, apoiaram. Arlindo Chinaglia, Benedita da Silva e Alencar Santana, todos do PT, votaram a favor. Kim Kataguiri (União-SP), Marco Feliciano (PL-SP) e Adriana Ventura (Novo-SP) também estavam entre os favoráveis.Farias ironizou: “Parece que o Partido Novo já abandonou Bolsonaro. Agora quer tirar o voto dele.” A piada não era só de efeito. O ex-presidente está sob investigação e, caso seja preso provisoriamente, perderia o direito de votar — algo que o atual sistema não impede. A emenda, portanto, não é só sobre segurança pública. É também sobre política.
O PL Antifacção: mais que proibir votos
A emenda não é o único ponto do projeto. O PL Antifacção, relatado pelo deputado Guilherme Derrite (PP-SP), foi aprovado separadamente, com 370 votos a favor. Ele cria o conceito jurídico de “organização criminosa ultraviolenta” — ou “facção criminosa” —, definida como grupo de três ou mais pessoas que usam violência ou ameaça para dominar territórios, intimidar autoridades ou atacar infraestrutura pública.O projeto também inventa o crime de “domínio social estruturado”, punindo com penas de 20 a 40 anos os integrantes dessas organizações. Líderes podem pegar até 66 anos. Além disso, prevê apreensão de bens, bloqueio de contas e até a possibilidade de desmantelamento de empresas ligadas ao crime organizado. É a maior reforma na legislação de combate ao crime organizado desde 2012.
Constituição em risco
O artigo 15 da Constituição é claro: apenas analfabetos, condenados com sentença transitada em julgado e pessoas privadas de capacidade civil perdem o direito ao voto. Nada sobre prisão provisória. A Suprema Corte já decidiu, em 2012, que a prisão preventiva não suspende direitos políticos — e que a suspensão só pode ser feita por lei, e só após condenação definitiva.“Essa emenda é um golpe na lógica do Estado de Direito”, disse a jurista Carla Ribeiro, professora da USP. “Você está punindo antes de julgar. É como dizer que todo preso é culpado. Isso desmonta o princípio da inocência, que é a base da democracia.”
O texto agora segue para o Senado Federal, onde será relatado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE). Ele já sinalizou que o tema exigirá análise cuidadosa. “Não podemos confundir segurança com autoritarismo”, afirmou em entrevista. “Se a Constituição protege o voto mesmo do preso provisório, é preciso justificar por que isso mudaria.”
Quem vai pagar a conta?
A mudança não é só jurídica. É prática. Em 2024, o TSE gastou cerca de R$ 12 milhões para organizar votações em 1.200 unidades prisionais. Mas esse custo é pequeno comparado ao impacto social. Cerca de 70% dos presos provisórios no Brasil são negros, jovens e de baixa renda — grupos historicamente marginalizados. Proibir seu voto é, na prática, silenciar uma parte da população que já tem pouca voz.“É uma forma de exclusão disfarçada de segurança”, afirma o sociólogo Roberto Almeida, da UFRJ. “Você não está tirando o voto de criminosos. Está tirando o voto de pobres que ainda não foram condenados.”
O que vem a seguir?
No Senado, a emenda pode ser derrubada, modificada ou aprovada tal como está. Se for sancionada, provavelmente será questionada na Suprema Corte — e aí o Brasil terá um novo embate constitucional. Enquanto isso, os presos provisórios que votaram em 2024 ainda estão lá. E o TSE ainda não começou a cancelar seus títulos.Como isso afeta as eleições de 2026?
Se a lei for aprovada antes das eleições municipais de 2026, até 6.000 eleitores podem ser excluídos da lista. Mas o cancelamento automático de títulos exige logística — e tempo. O TSE já avisou que não tem estrutura para fazer isso em semanas. O resultado? Pode haver confusão nas seções eleitorais, recursos jurídicos em massa e até impugnações de votos.Frequently Asked Questions
Por que a emenda pode ser considerada inconstitucional?
A Constituição Federal de 1988 só suspende direitos políticos para condenados com sentença transitada em julgado, analfabetos e pessoas com incapacidade civil. Presos provisórios, por definição, não foram condenados — e a presunção de inocência é um pilar do Estado de Direito. A emenda viola o artigo 15 da Constituição ao impor uma punição política sem julgamento, o que a Suprema Corte já rejeitou em decisões anteriores.
Quem mais pode ser afetado por essa mudança?
A maior parte dos presos provisórios no Brasil são homens negros, entre 18 e 30 anos, de periferias. Eles representam cerca de 40% da população carcerária. Proibir seu voto é, na prática, excluir uma fatia da sociedade que já é marginalizada. Isso pode reforçar o ciclo de invisibilidade política e aumentar a desconfiança nas instituições democráticas.
O que acontece se o Senado aprovar a emenda?
O projeto vira lei e será imediatamente contestado no Supremo Tribunal Federal. Ações de inconstitucionalidade já estão sendo preparadas por ONGs como Anistia Internacional e Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. Enquanto isso, o TSE terá de cancelar títulos de até 6 mil eleitores — um processo burocrático que pode levar meses e gerar caos nas eleições de 2026.
O PL Antifacção é apenas sobre votos?
Não. O projeto principal cria novos crimes, como “domínio social estruturado”, e aumenta penas para líderes de facções criminosas — podendo chegar a 66 anos. Também prevê apreensão de bens e bloqueio de ativos. É uma reforma profunda no combate ao crime organizado, mas a emenda sobre votos é o ponto mais controverso, porque atinge direitos civis em vez de apenas punir crimes.
Por que alguns membros do PT votaram a favor?
Muitos parlamentares do PT alegaram que, apesar da inconstitucionalidade, o projeto contém medidas importantes contra violência nas periferias. Outros, como Lindbergh Farias, sugeriram que a emenda serve como um instrumento político para limitar o voto de figuras como Bolsonaro, caso sejam presos provisoriamente. A votação reflete divisões internas, não uma posição unificada do partido.
Existe precedente em outros países?
Sim. Nos EUA, 48 estados proíbem votos a presos condenados, mas apenas 12 proíbem presos provisórios — e muitos desses têm processos judiciais em andamento para revogar essas leis. Na Alemanha, Canadá e África do Sul, presos provisórios mantêm o voto. O Brasil sempre foi um dos poucos países da América Latina a manter esse direito — e agora pode perder essa posição.